A receita dos sábios: obras e nomes da filosofia clássica renascem com as redes sociais 123l5d
Eles rompem os muros da academia e ressurgem como antídoto para tempos de crise e dúvidas existenciais 713a5j

Ele é um dos pensadores mais lidos, citados e reverenciados na atualidade. Seu livro estrela a lista dos mais vendidos. Suas frases pipocam pelo Instagram, onde até fã-clube tem. Mas há um detalhe peculiar na biografia desse influenciador: ele viveu há mais de 1 800 anos. É Marco Aurélio (121-180), o imperador romano que, filosofando sobre a beleza e as agruras da existência, hoje também foi alçado ao panteão das redes sociais. Embora suas prescrições sejam endereçadas a desafios onipresentes na história da humanidade, não há dúvida de que sua recente ascensão é sintoma da crise psíquica e ética que a sociedade atravessa. “Dá na mesma observar a vida humana por quarenta ou 40 000 anos: pois o que haverá ainda para ver?”, postou, em suas Meditações, o monarca que viveu entre guerras e pestes. Uma obra que é um feliz exemplo de como a Filosofia — essa com F maiúsculo — pode pular os muros das universidades e incitar leitura e reflexão sobre o mundo e nós mesmos.
Marco Aurélio é um dos luminares do estoicismo, corrente que surgiu na Grécia Antiga antes de Cristo nascer, foi abraçada pelos romanos e, depois de um hiato na Idade Média, voltou a bater ponto no pensamento ocidental. É uma linha filosófica pé no chão, menos dada a viagens e conflitos existenciais. E que, revitalizada com novos embaixadores, ou a ganhar leitores e seguidores na esteira das angústias da pandemia. Os estoicos — um adjetivo que remete a uma suposta frieza no modo de reagir às vicissitudes — pregam que nos concentremos no aqui e agora, deixando de lamentar sobre o ado e roer as unhas pelo futuro. Recomendam também que cuidemos dos outros e do que nos cerca como de nós mesmos. Ideias aparentemente simples, que escondem discussões mais profundas e, com frequência, nos perturbam pelo abismo que se vivencia entre a teoria e a prática.

O fato é que Marco Aurélio se tornou pop. Suas Meditações, uma espécie de diário mantido em meio às suas atribulações, figura na lista de livros mais vendidos de VEJA há semanas, ao lado de um boxe com os grandes mestres da filosofia estoica, caso de Epiteto e Sêneca. Tamanha projeção é fruto também do trabalho de professores, escritores e influenciadores que retomaram seus preceitos e, confrontando-os com as demandas do século XXI, atualizam e popularizam o que os sábios legaram. O mais famoso deles é o americano Ryan Holiday, que tem quase 1 milhão de seguidores no Instagram e já publicou no Brasil nove livros pela Editora Intrínseca. Juntos, seus títulos somam 515 000 exemplares comercializados. Neste mês, lança Faça o Certo, Faça Agora, focado num dos pilares do estoicismo, a noção de justiça — e como implementá-la em um mundo desigual.
Holiday não está sozinho nessa empreitada de divulgação da filosofia antiga. Outro jovem companheiro de missão é o britânico William Mulligan, autor de O Jeito Estoico de Viver (Editora Latitude) e dono de um canal no YouTube com quase meio milhão de fãs. Digamos que esse é um dos efeitos colaterais positivos das redes, entre tantas reações adversas: elas operam como um propulsor de ideias. Mas o fenômeno, como mostram os números do mercado, não se restringe à arena virtual. O grupo Edipro, com quatro décadas de publicações de filosofia clássica, deu uma guinada após começar a lançar os estoicos em 2019. Em dois anos, as vendas do segmento tiveram sua primeira decolagem, com aumento de 300%. “Nestes primeiros meses de 2025, já temos um novo pico, com cinco vezes e meia o faturamento de 2019”, diz a publisher Maíra Lot Micales. “Muitos leitores nos chamam de a casa dos estoicos.”
Embora esse ramo da filosofia greco-romana seja o grande hit nas livrarias e mídias sociais, outros nomes monumentais têm sido resgatados e reapresentados ao público. Nos Estados Unidos, o best-seller do momento é Open Socrates (algo como “Sócrates aberto”), da professora húngara radicada em Chicago Agnes Callard. A obra recupera os ensinamentos do pai da filosofia grega — entre eles o poder do diálogo — em face dos dramas contemporâneos. Mas o leitor brasileiro também pode beber dos originais, ou melhor, das traduções fiéis aos originais. Foi com esse espírito que a Editora 34 publicou uma nova edição de Ética a Nicômaco, de outro gigante, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). “Ele trata de questões sobre como viver a vida da melhor maneira possível, de que forma lidar com desejos e emoções e quais as condutas esperadas nas relações interpessoais”, diz o tradutor André Malta, professor de língua grega da USP.

Todo esse movimento é reflexo também de uma visão que não nasceu ontem, mas encorpou nos últimos anos: a aspiração de tirar o saber da torre de marfim das universidades. E, se a internet pode ser uma ponte para democratizar a filosofia, quem tem pavimentado essa via são estudiosos e professores que ajudam a transpor conceitos mais ou menos complexos ao cidadão de hoje, ambientando-os nos contextos atuais, em meio a preocupações de foro íntimo ou coletivo. É aí que ganham palco e likes nomes como Mario Sergio Cortella, Clóvis de Barros Filho, Luiz Felipe Pondé e Lúcia Helena Galvão.
Como tudo o que cai nas redes gera controvérsias, nessa onda de popularização dos velhos e novos clássicos há quem critique o viés de autoajuda que enverniza alguns lançamentos e postagens. Mas, no fundo, a filosofia também presta esse serviço: abre horizontes para o desenvolvimento pessoal. O problema é que, sob o peso do marketing, pensadores podem ser distorcidos ou mal interpretados. “O estoicismo também é apresentado por meio de simplificações grosseiras e deturpações”, afirma Aldo Dinucci, professor de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo e último tradutor das Meditações de Marco Aurélio, pela Penguin-Companhia. “Essa filosofia jamais foi uma técnica individualista para encontrar sucesso pessoal, mas uma doutrina para buscar o bem comum.” Eis uma lição atemporal, compartilhada por Marco Aurélio, Sócrates e companhia, e ainda hoje frequentemente negligenciada.
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947